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Siga o coelho e entre na toca, Aqui você vai encontrar textos sobre várias coisas te convidando a refletir. Mas lembre-se, eles foram escritos por alguém e expressam uma opinião, não uma verdade, você pode discordar ou não. * Spoilers estão identificados e ocultos, para ler selecione o trecho.

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O Conceito de Amizade em Stranger Things




Com a volta de Stranger Things, depois de um ano de espera de muitos fãs, eu me vejo no dever - mais do que de fã da série, como entusiasta de séries, do upside down dentro do geek no nosso mundo e amante referências - de trazer um pouco do universo narrativo dessa produção. Ambientada nos anos 80, com uma trilha da época que faz juz ao cenário e um clima nostálgico de sessão da tarde com referências desde Steven Spilberg a Stephen King; a série traz enigmas, mistérios e amizade na fictícia Hawkins em Indiana, onde um grupo de garotos investigam o desaparecimento de Will ao mesmo tempo em que sua mãe entra num estado de desespero enquanto procura pelo filho seguindo pistas ao se comunicar com ele através de estranhos sinais. A comoção pelo desaparecimento toma conta da cidade, o chefe de polícia Hopper assume a investigação que acaba agindo como um gatilho em meio a suas memórias da filha que ele perdera tempos antes. Os acontecimentos ganham proporção e envolvem cada vez mais pessoas, até que eles conhecem Eleven e descobrem o que está acontecendo ao mesmo tempo em que a companhia elétrica tenta encobrir o rastro dos seus experimentos e um mundo paralelo - upside down - que coexiste sob a superfície está prestes a vir a tona.

Mas você vai falar só de Stranger Things?
Vou sim.



Mais que uma coletânea de referências em homenagem aos anos 80, Stranger Things é sobre amizade. A série começa com uma sessão de RPG de Dungeons & Dragons entre o grupo de amigos, estabelecendo uma conexão entre eles e trazendo o espectador para o lado deles  dentro da mesa da aventura. Já nesse momento conhecemos o que cada um representa no grupo ao ver seu comportamento no jogo como uma metáfora de seu convívio cotidiano. Esse momento inicial é muito significativo porque mostra a forma como as crianças enxergam as coisas e as relações  pessoais, bem como o jeito de resolver seus problemas: para eles, a vida e o mundo são uma grande aventura de Dungeons & Dragons e isso é reiterado aos poucos mais para frente conforme somos introduzidos cada vez mais nesse universo infantil. A grande metáfora é o momento em que Will revela para Mike o real valor que havia tirado no dado e recebe um veredicto sobre ter sido pego ou não pelo demogorgon independente da partida já ter se encerrado - isso mostra inclusive a honestidade de Will acerca dos dados.

Então acontece algo de maravilhoso: depois de encontrar Eleven e ajudá-la levando-a para casa onde ela encontra abrigo longe dos cientistas da companhia elétrica, os meninos precisam ensinar a ela o conceito de amizade. Porém isso se dá segundo a concepção que há entre eles, seus próprios códigos e valores. Mike da abrigo em sua casa, confia nela contrariando Lucas na esperança de encontrar Will enquanto Dustin é o elo remanescente entre o grupo de amigos. E, quando surge a necessidade, eles constroem para Eleven um conceito - complexo de se colocar em palavras - extremamente simples e puro para definir amizade, profundo e que une eles segundo aquilo que eles acreditam.



Pode soar óbvio que promessa é algo que não se quebra, mas Eleven não tem o referencial do que é uma coisa realmente confiável após conviver nas dependências dos laboratórios da companhia elétrica. Ela não tem em seu repertório conceitual a noção de amizade. Quando Mike diz que amigos não mentem, ela não tem em sua memória uma referência do que é uma relação baseada em verdade. - Amigos contam a verdade sempre. E eles nunca mentem um para o outro. - A definição de amizade para os meninos se baseia na relação de convívio que eles têm, na troca, confiança e companheirismo natural cotidianos. Existe ali um manual invisível que eles precisam transcrever para ela entender esse tipo de relação, - Um amigo é alguém por quem você faria qualquer coisa. Você emprestaria as suas coisas legais como gibis e cards raros. E eles nunca quebram uma promessa. -  essa é a forma mais pura, inocente e verdadeira que os meninos encontram para definir amizade e é a essência da série. É em cima desse conceito que Eleven vai se moldar ao conviver em sociedade fora da condição de cobaia.

Cada personagem expressa e demonstra sua percepção dos relacionamentos construindo ao longo da narrativa seu referencial: Nancy aprende a conhecer Jhonatan e redescobre ele como pessoa reconstruindo seus conceitos a seu respeito conforme o conhece melhor enquanto eles se ajudam mutuamente ao procurar por Will e Barb; ao mesmo tempo ela ajuda Steve a ser uma pessoa melhor ao mostrar para ele que não é preciso ser um valentão para ter atenção e ser legal dentro do grupo de amigos - pelo contrário. Enquanto as crianças percebem o mundo através do RPG com suas metáforas e precisam ensinar Eleven sobre amizade, Nancy redescobre a si mesma como uma pessoa forte e capaz que não depende de um namorado para ser uma pessoa aceitável socialmente ao ser exibida pela escola ao seu lado. Então, com o tempo, ela se transforma num novo elo de amizade que une diferentes pessoas.



Recheada de referências a filmes e livros que remetem ao nosso imaginário popular - Star Wars, ET, Alien, Freddy Krueger, Tubarão, Carrie - a estranha, It - a coisa, Clube dos Cinco, Conta Comigo, X-Men, Poltergeist, O Hobbit, entre várias outras narrativas e aliada a uma trilha sonora cuidadosamente escolhida, Stranger Things traz a tona uma atmosfera nostálgica que consegue construir esse clima das relações interpessoais dentro do contexto de homenagem e referências de forma maravilhosa.

sábado, 23 de setembro de 2017

Visi(BI)lidade - The Emmy Goes To

*Pode conter spoiler de Black Mirror - San Junipero






Em meio a tantas campanhas importantes, eu vi a necessidade de falar sobre algo apagado e muito relevante. Muita gente não sabe, mas setembro também é o mês da visibilidade bissexual, embora seja pouco divulgado e acabe ofuscado por tantas outras campanhas como o Setembro Amarelo que combate o suicídio e a depressão. Mas o B da sigla LGBT+, não é Bolacha (nem Biscoito se você for carioca, a gente respeita todas as origens aqui), é bissexual mesmo - sim, bissexuais existem, eu juro - e sofre um apagamento e uma discriminação dentro e fora da comunidade LGBT+ sendo consideradas pessoas indecisas entre outros no leque da bifobia. A bissexualidade ainda é pouco representada tanto nas campanhas de conscientização, promoção de informação, contra discriminação e nas mídias e entretenimento. Esse último um espaço importantíssimo para chegar até as pessoas um retrato, se não fiel, ao menos verossímil em relação a diversidade existente na vida real e causar uma reflexão acerca da sociedade mostrando que esse leque de possibilidades existe sim.




Um exemplo de como isso é ofuscado em meio a tantas outras informações é a própria história: em 1999 três ativistas dos direitos bissexuais dos Estados Unidos: Wendy Curry do Maine, Michael Page da Flórida, e Gigi Raven Wilbur do Texas escolheram o dia 23 de setembro para celebrar a bissexualidade e fazer com que essa parcela da sociedade muitas vezes esquecida pelos debates fosse notada. Embora verídico, eu encontrei apenas isso em uma pesquisa longa com a intenção de trazer dados, mêses atrás quando pesquisei sobre a visibilidade LGBT+ de uma forma geral eu achei dados muito mais completos. Nós esbarramos em uma divulgação ainda pequena nos dias atuais. Essa data foi criada em resposta à marginalização que as pessoas bissexuais sofrem dentro e fora da comunidade LGBT+ convidando a discutir e combater a bifobia presente na sociedade, ainda que velada e camuflada em outras formas de se manifestar.

bis·se·xu·a·li·da·de |cs|
substantivo femininoQualidade de bissexual.
Palavras relacionadas: bifobia, bissexual, bifóbico
bis·se·xu·al |cs|
adjetivo de dois gêneros 
1. [Botânica]  Diz-se da flor que reúne os dois sexos. 
2. Hermafrodita. 
3. Relativo à bissexualidade.adjetivo de dois gêneros e substantivo de dois gêneros 
4. Que ou quem tem atração ou interesse sexual pelos dois sexos.(https://www.priberam.pt)


A diversidade sexual já ganhou muito espaço  no meio do entretenimento e aumentou significativamente sua representação, mesmo longe de uma dimensão e construção ideais. Porém a expressão da bissexualidade na mídia ainda deixa a desejar. Segundo dados da GLAAD - Gay & Lesbian Alliance Against Defamation, uma organização não governamental com o objetivo de monitorar a forma com que a mídia retrata pessoas LGBT+, fundada em 1985 em NY para responder a cobertura sensacionalista de uma epidemia de AIDS - , o número de personagens bissexuais aumentou e as mulheres estão mais representadas. Mas isso passa uma idéia errada de que elas são mais aceitas quando, na verdade, algumas ainda estão sendo fetichizadas e sexualizadas pelos meios de comunicação para satisfazer um desejo machista da nossa cultura. Muitos personagens ainda são retratados dentro de estereótipos da bifobia e precisam desconstruir esses (pré)conceitos tanto na mídia quanto na visão das pessoas.

Alguns personagens no entanto são colocados de uma forma muito coerente e verdadeira dentro da narrativa, trazendo para o espectador um momento de reflexão sobre a realidade.Em meio a esse contexto, no domingo (dia 17 de setembro) o Emmy premiou os melhores programas de televisão do horário nobre dos Estados Unidos - de acordo com a escolha da Academia de Artes e Ciências da Televisão. Entre as escolhas campeãs desse ano está “San Junipero”, o quarto episódio da terceira temporada de Black Mirror, vencedor na categoria melhor filme feito para a TV e também como melhor roteiro em minissérie. A série é conhecida por expor o pior lado do ser humano com uma narrativa trazendo um futuro relacionado diretamente ao uso da tecnologia, além dos já habituais finais trágicos que fazem o espectador refletir sobre a forma com que leva a vida. Porém San Junipero se destaca nesse sentido por acabar de forma surpreendentemente bem, embora ainda cause um desconforto a respeito dos temas abordados - vida e morte.





San Junipero é uma cidade simulada para abrigar as pessoas em sua pós morte, muitas delas vivem uma experiência ainda em vida para saber se querem morar ali ou não. Yorkie e Kelly se conhecem em um bar local, aparentemente na década de 80 e vivem uma tensão sexual até se conhecerem melhor e se entregarem a essa paixão assumindo o que há entre elas. Yorkie revela que é sua primeira vez com alguém, seja homem ou mulher, já Kelly é bissexual e já foi casada por um bom tempo. Entretanto, elas só ficam juntas após Yorkie procurá-la através do tempo em San Junipero, em épocas diferentes, até conseguir encontrar Kelly, conquistar sua confiança e ambas trocarem histórias sobre si. Kelly confessa que está morrendo na realidade e não tinha qualquer intenção de estabelecer uma ligação genuina com outra pessoa dentro da simulação, já Yorkie é uma mulher que vive paralisada há mais de 40 anos, ocasião em que seus pais a rejeitaram por ser lésbica e ela bateu o carro num acidente.

O roteiro apresenta personagens lésbica e bissexual complexas e bem desenvolvidas, ambas realidades com histórias de luta geralmente apagadas dentro e fora da ficção. Além disso traz uma reflexão densa a respeito da vida e morte; e a forma como lidamos com isso fazendo com que o espectador pense a respeito de suas atitudes levando-o a valorizar mais aquilo que tem ao seu alcance.


Black Mirror é conhecido por tocar em feridas ao falar de forma pesada sobre assuntos delicados revelando facetas do ser humanos, esse episódio traz - entre possibilidades - uma alternativa na qual os personagens podem ser felizes, ou é isso o que nós queremos acreditar ao assistir. Entre poucas representações e entre tantas delas problemáticas, San Junipero apresenta uma situação delicada e profunda levando dois merecidos Emmys.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Baseado em Fatos Reais



A dúvida que paira no limiar entre a realidade e a ficção traz uma sensação de imersão deliciosa. Quem nunca quis compartilhar por um momento os medos, alegrias, conquistas e tudo o mais pelo que o personagem passava? - admita que sim, não vamos contar para ninguém. Vamos concordar que não tem nada melhor do que terminar um filme com aquele sentimento pós créditos depois de um “Baseado em fatos reais” se perguntando se era tudo marketing da ficção ou se aconteceu de verdade trazendo um arrepio na espinha do início ao fim, ou então iniciar um livro já com a semente da dúvida plantada logo no prefácio quando nunca saberemos se o autor - foi ele mesmo quem escreveu? É o relato de um sobrevivente? São vestígios de alguém que não sobreviveu? - fez parte daquilo ou não. Ah, isso não é maravilhoso? Essa linha entre a ficção e a realidade baseada num e se? regada a referências, easter eggs e vestígios trazendo a narrativa cada vez mais para nosso mundo.





Nós vivemos de referências (tudo bem, você talvez não, eu digo nós ~ amantes de ficção... Ficção?), afinal Steve Rogers tá aí pra isso né. Mas se a arte imita a vida, a vida imita a arte e nós nunca saberemos o que realmente aconteceu primeiro. E não seria estranho demais encontrar histórias na vida real que traçam uma tênue coincidência (será?) com a ficção e flertam com nossa percepção do que é ou não real? É o que acontece quando a realidade extrapola a ficção e encontramos relatos como “shadow people”.

Embora não exista um consenso científico para definir o que realmente são shadow people, esse é um termo usado para se referir a certas sombras em formato humano que algumas pessoas enxergam brevemente ou ainda relatam terem sido visitadas enquanto dormiam. As divergências das definições vão desde espíritos malignos até viajantes do tempo e alienígenas, ou simplesmente pessoas presas entre o mundo espiritual e o material. Se é verdade ou não, não há provas nem consenso, mas essas sombras permanecem sendo relatadas


Um livro com uma premissa muito peculiar que passa uma sensação muito parecida com essas sombras é Brightville do Mateus Rizzo, autor do Wattpad - plataforma de publicação online.




Sinopse:
Brightville, uma pequena e tradicional cidade do estado de Washington, representava tudo que Mark, um obsessivo e problemático ex-agente do FBI, e sua família precisavam. Tranquilidade, um bom ambiente e, principalmente, uma tela em branco, onde pudessem recomeçar. Após alguns meses em Brightville, porém, a ilusão de tranquilidade começa a se desfazer e a cidade pequena e nevoenta passa a se parecer cada vez mais com um cenário de terror, trazendo a tona velhas chagas e feridas que o tempo não conseguiu cicatrizar. Quando um criminoso brutal começa a atacar nas noites da cidade, as coisas chegam em um ponto de ebulição e Mark precisa descobrir os segredos de Brightville e o que realmente se esconde nas sombras, antes que tudo se perca, incluindo sua família, a cidade e ele mesmo.



Esqueça os clichês de gênero, esqueça qualquer coisa que vier a sua mente ao imaginar terror. Muito mais que o sangue e o gore, o livro vai além e traz um jogo psicológico, um jogo com o pavor íntimo de cada um, o verdadeiro terror. Mas antes de tudo traz um cuidado notável e minucioso com o texto em cada palavra e expressão ao elaborar diálogos e situações muito bem escritos e verossímeis com seu contexto social, é extremamente fácil enxergar as cenas acontecendo da forma como são descritas pelo cuidado que o autor tem com o cenário e o léxico adequado.


Nós entramos em Brightville com Mark, com a promessa de uma vida nova, acompanhamos ele em sua mudança e somos tragados com ele num caminho sem volta. Mais que um cenário, Brightville é o personagem principal dessa estória. A cidade é um organismo vivo que dorme e acorda junto com as pessoas e em meio a Brightville há um outro personagem enigmático com o qual seus habitantes convivem: a escuridão.


O leitor imerge na tensão do personagem conforme cai a noite, e precisa correr atrás de todas as peças encaixando-as antes que amanheça porque logo será um novo dia e antes que perceba cairá a noite mais uma vez. A narrativa te leva entre os personagens num ritmo frenético de acontecimentos simultâneos durante as noites enquanto eles são obrigados a encarar seus medos e fracassos do passado revivendo-os. Nós conhecemos os personagens pelo ponto de vista do narrador e dos outros personagens como se fossemos mais uma pessoa comum da cidade conhecendo-os. Depois somos levados ao seu passado para encarar seus medos junto com eles em meio a suas mentes num jogo sádico e doentio entre Mark e um vilão invisível dez passos a sua frente.


O livro te convida para mudar de vida com Mark em uma pacata cidadezinha, tentador e irrecusável. Você aceita, óbvio, é um convite sedutor e atraente, porém sem volta. Uma cidade onde cada um tem uma motivação que o faz seguir em frente mas tem também o peso da culpa e do medo; a sombra dessa culpa e medo residentes no passado paira agora sobre seus donos. Você sabe o que é real quando as luzes se apagam?
Bem vindo a Brightville: uma cidade pequena, um futuro brilhante. Não esqueça de apagar a luz ao fechar a porta deixar a luz acesa.


O autor, Mateus Rizzo, é um cara qualquer: 19 anos que devia crescer, mas, em vez disso, prefere escrever histórias de terror e compartilhar fotos de gatinho nessa grande rede mundial de computadores. Mentira, de qualquer ele não tem nada e vocês podem conferir isso na entrevista exclusiva. “Conta pra gente como você se sentiu quando descobriu que a realidade plagiou seu livroClique aqui para ler a entrevista.


Entre ficção e realidade, fica ai o questionamento. Na dúvida deixo o link do livro aqui ;)
Página do autor aqui



quarta-feira, 12 de julho de 2017

Fight Like a Girl - A Força de Sansa Stark

*Pode conter spoiler de Game of Thrones



Julgar a vida alheia é uma delícia né. Mentira. É feio, não façam isso em casa, crianças. Mas tudo bem se estivermos falando de ficção, é para isso que serve a sétima arte (ou a oitava, no caso), não? Para subir os créditos e reescrevermos todo o roteiro num debate sobre enredo e personagens com os amigos - porque obviamente faríamos melhor que os escritores originais ou é isso o que pensamos como bons críticos de bar que somos quando debatemos toda uma cronologia bagunçada, ou uma adaptação ~um pouco~ diferente do livro ou tantas outras coisas. E olha, a ficção ta ai para isso viu, pode criticar a vontade. Porque se não pudermos entrar naquele mundo, trazer para nossas discussões diárias e reviver tudo aquilo entre nós, então não faz sentido que aquele universo exista. Melhor ainda do que essa imersão é a representação e identificação que criamos com o personagem.



Convenhamos, é muito confortável, cômodo e fácil para nós - muito bem alojados em um sofá, uma cama ou onde você preferir, diante da tela de sua escolha em meio a tantas opções que temos atualmente; em nosso atual contexto histórico - nos identificarmos com alguns personagens. É muito mais fácil enxergarmos força e determinação em certos personagens. Mas precisamos ter uma mentalidade muito preguiçosa para igualmente julgar outros personagens abstraindo todo o contexto no qual está inserido sem levar em conta todas as informações que nós temos e ele não dentro de seu contexto narrativo.



É muito mais fácil se identificar, apoiar e desejar elementos da personalidade de uma Arya Stark. Justamente porque ela distoa e sobressai em meio ao que esperamos atraindo a atenção para si. Ela é a menina corajosa que luta sozinha e foge para se salvar, que promete vingança e vai até o fim do mundo para se provar e alcançar seus objetivos. Ela nunca foi uma criança normal e nunca conseguimos ver o que seria uma criança normal porque ela nos fez perder esse referencial. Ficou muito confortável usar ela como o herói que nós buscamos hoje e desvincular tudo o que acontecia ao redor dos personagens. Mas se você não consegue amar Arya e não olhar para Sansa Stark sem chamá-la de Sonsa, você está sendo -no mínimo- preguiçoso. Preguiçoso por não enxergar a riqueza de conceito narrativo e como essa personagem é tão bem construída a ponto de ser odiada exatamente sem motivo (calma, eu vou explicar). Você, que está lendo esse post aprendeu sobre igualdade de gênero e como homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres, né? - a gente espera que sim, amém. Então, ali não era assim. Você com a sua mentalidade - estamos supondo que você tem uma concepção ideal de igualdade de gênero - enxerga coisas que a personagem nunca vai enxergar e foi educada de forma a não enxergar. Soma a isso o fato de que você está assistindo todos os núcleos da trama e a personagem não tem acesso ao mesmo conteúdo que você, leitor desse post :) Tá acompanhando? Tá vendo como essa galera foi injusta com ela?

Agora que estamos entendendo o motivo dela ter tido muitas atitudes tidas pelo fandom como condenáveis, que lhe renderam o título de Sonsa, vamos ver porque ela é um personagem forte. Sansa nasceu e cresceu em meio aos costumes daquela cultura, cultivando - ao contrário da irmã - sua ingenuidade acerca do mundo. Ela era quem ela foi educada para ser, quem sua cultura ensinava a ser e aprendeu muito mais sobre o mundo e a vida com o próprio mundo. Sansa é uma personagem forte porque em sua inocência viu seu mundo desmoronar, aprendeu sobre o mundo vivendo ele ao ser jogada na realidade e sobreviveu - sim, ela é uma sobrevivente - aos seus inimigos convivendo em meio a eles. Ela jogou e ganhou.

A mesma menina que saiu de Winterfell sobreviveu a Westeros, ela pode não ser mais a mesma menina, mas com toda sua ingenuidade inerente a sua idade e àquela cultura patriarcal ela cresceu em meio ao ambiente mais perigoso para ela. Em meio a interesses e jogos de poder, Sansa também aprendeu a usar suas próprias armas: burocracias e diplomacias.  

Vamos julgar sem preguiça de pensar em todo o universo narrativo por trás do personagem, ok? Ok. Mas só os personagens, julgar os amiguinhos não pode ;)

terça-feira, 27 de junho de 2017

Depois de todo esse tempo?



**Hoje, há vinte anos, Harry Potter saiu de um mundo particular e ganhou o mundo transformando a vida de milhares de pessoas para sempre. O mesmo livro de duzentas páginas que nenhuma criança iria ler, o mesmo livro recusado por várias editoras, o mesmo livro com um pseudônimo porque foi escrito por uma mulher - e quem leria um livro escrito por uma mulher? Hoje, há vinte anos, Harry Potter nasceu para o mundo para nos ensinar sobre amor, amizade, diversidade e superação.

~Mas você vai falar só sobre Harry Potter?
~Vou.
~Mas você já fez isso.
~O X fica ali em cima.

Se a vida imita a arte, a arte imita a vida e nem tudo é o que parece. Nós aprendemos que palavras são nossa inesgotável fonte de magia, capazes de causar grandes sofrimentos e também de remediá-los afinal foi justamente com palavras que JK tocou e mudou completamente a vida de tanta gente; aprendemos que nossas escolhas mostram quem somos muito mais do que nossas habilidades porque o que fazemos com aquilo que somos é o que realmente nos define e nós temos o poder de escolher; que podemos encontrar felicidade mesmo nas horas mais sombrias - não que seja fácil. Acima de tudo, que existe muito mais por trás de alguém além de rótulos ainda que a gente insista em encaixar as pessoas em rótulos em nosso dia a dia. Se o bruxo mais corajoso que já existiu foi um Sonserino que viveu e morreu por amor e o mais covarde foi um Grifinório, como podemos olhar para alguém e julgar a pessoa ou enfiá-la em conceitos que nunca poderão definir completamente alguém? Não seria estúpido?

Em meio a uma releitura da segunda guerra na qual Voldemort caça trouxas e meio sangue, num texto cheio de metáforas e simbolismos fantásticos sobre igualdade e diversidade sobre a importância de ser você mesmo e como as nossas diferenças nos unem; aprendemos que o amor é o feitiço mais poderoso. O poder do amor e da amizade se misturam e nos envolvem no meio de todo o caos da guerra, porque no fundo cada um são personagens tão humanos que tem em si sua própria luz e trevas reveladas a nós conforme somos tragados em meio a magia desse mundo.



E, aprendemos ainda que, para a mente bem estruturada a morte é apenas a grande aventura seguinte. Não somos, obviamente, nenhum Dumbledore, e não estamos preparados para isso nem lá e nem no nosso mundo trouxa.. Embora Harry tenha escolhido viver e a gente saiba que podemos fazer nossas próprias escolhas. Embora depois de tudo isso a gente tenha aprendido a ver o mundo e as pessoas de outra forma, embora muitas outras coisas.

Mais do que uma geração com começo, meio e fim, o fandom é toda uma legião que cresce a cada dia sem qualquer fronteira. Essa magia poderosa sobre amor, amizade, diversidade está em cada um e se renova a todo momento como um organismo vivo.

Muito obrigada, JK.

After all this time?
~Always

**Só é amanhã quando eu acordo, se eu ainda não fui dormir, ainda é hoje (26-06), ok? ok.

sábado, 3 de junho de 2017

Nós Precisamos Falar Sobre Sense8



Existem coisas na vida que não trabalham com meio termo e despertam amor ou ódio nas pessoas, ainda que uma boa parcela desses grupos deixe se levar pelos motivos errados - é muito triste, se não trágico como tanta gente reduz Sense8 a sexo. Convenhamos, grande parte dessa aversão é responsabilidade - sim, não quero usar culpa aqui - do próprio fandom quando ele se divide em brigas particulares e internas passando uma imagem completamente errada e imatura sobre algo que deveria ensinar sobre ser humano - ou milhares de outras mensagens igualmente importantes, em tantos outros casos. Tudo bem, se nem Deus tem um fandom perfeito quem dirá uma simples série? Mas não estamos falando de uma simples série. Nós precisamos falar sobre Sense8.  ~ Mas você vai falar só sobre Sense8? // Vou // Só sobre Sense8? // Vou // Mas já tem tanta gente falando // Você pode clicar no X ali em cima ~

A verdade é que grande parte de quem ama ou odeia, ama ou odeia Sense8 exclusivamente por causa das cenas de sexo (oi, vamos falar sobre as nossas novelas super moralistas?). Mas hipocrisias a parte, todo grupo de pessoas tem um subgrupo que distorce as ideias desse grupo e são exatamente essas ideias erradas que as pessoas de fora vão colocar uma lupa e usar para julgar as coisas, na maioria das vezes sem conhecer - sim, as pessoas fazem isso, eu sinto muito. Se você ama Sense8 por causa das clássicas cenas de suruba ou se você odeia Sense8 por causa das clássicas cenas de suruba, nós temos algumas opções: você assistiu errado, assiste de novo; você nunca assistiu e julgou sem conhecer, vai assistir e formar sua opinião; fim. Se você gosta ou não por qualquer outro motivo, parabéns por não se comportar como uma criança olhando para o livro de biologia. ~ Apesar da classificação indicativa, grande parte do público não entendeu essas cenas de sexo e tratava elas como uma criança de treze anos na aula de biologia, sinto muito por isso Lilly e Lana Wachowski.


Sense8 é antes de tudo sobre ser humano e trata a diversidade como um mecanismo natural da evolução, a diversidade em seu conceito mais puro e amplo: a conexão humana. Como falar em ser humano como verbo sem falar em sexualidade, machismo, racismo, intolerância religiosa, desigualdade social, preconceito, coragem, amor, família, amizade, união, solidariedade... ? A complexidade que conecta as pessoas é muito maior e mais profunda do que isso e, como falar sobre conexão humana sem desconstruir tudo o que já conhecemos e repensar todos os conceitos do mundo? Porque não existe conexão humana se primeiro você não se despir de todos os rótulos que o mundo te ensinou até hoje e olhar para as pessoas a sua volta da forma mais pura que existe, para enxergar sua alma e seus sentimentos, seus pensamentos e suas necessidades - para enxergar outro ser humano como você. Sense8 ensina a repensar tudo o que já aprendemos até hoje sob outra perspectiva a partir do momento em que coloca a relação com o outro como um aspecto da evolução. O que poderia ser mais profundo do que olhar para uma pessoa como outro ser humano?

Mais que isso, é sobre empatia. E você não precisa ser homem, mulher, feminista ou gay para se identificar com a pessoa ao seu lado, só precisa ser humano para ter empatia.

Enquanto estivermos juntos, eu sei que não tem nada que não podemos fazer

Sense8 era uma série ousada em muitos sentidos, tanto conceitual quanto executivo. Você não pode falar para as pessoas reformatarem seu HD interno e redefinirem seus conceitos esperando que fique tudo bem, também não pode gastar nove milhões por episódio e esperar que fique tudo bem. Como toda grande ousadia tem seus riscos, Sense8 encontrou seu fim precoce. Mas também deixou todo um legado e seu fandom é o maior cluster do mundo que vai passar adiante cada mensagem.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Todos os Porquês do Mundo

13 Reasons Why vai para seu segundo mês e já não é nem de longe uma novidade, deixando espaço para outras polêmicas muito mais atuais no nosso mundo movido pela urgência da tecnologia onde vivemos a cada dia um novo ~museu de grandes novidades~ (enquanto corremos contra o tempo para chegar desesperadamente ao final de mais uma temporada e ao mesmo tempo fugir dos spoilers). - Cazuza tinha razão quando profetizou a nossa vida quase trinta anos atrás. Então porque vou falar sobre isso?


Por que uma menina morta mentiria?


Mas esse mesmo mundo é cheio de Porquês, então mesmo que um mês pareça anos e milhares de coisas já tenham acontecido e sido ultrapassadas, mesmo que milhares de coisas já tenham sido ditas sobre 13 Reasons Why - ainda que milhares de pessoas continuem por ai ignorando todas elas - , mesmo que milhares pessoas já tenham sido atingidas pela importância de 13 Reasons Why e isso tenha sido exaustivamente debatido, acredite… ainda existem milhares de Porquês no mundo. Ainda existem milhares de Porquês em todos os lugares, assim mesmo com maiúscula, pessoas porquês.  Por isso mesmo depois de tanto tempo, depois dessa infinidade de coisas que já aconteceram em tão pouco tempo ainda é importante falar sobre o quão absurdo é existirem tantos Porquês.

Hannah Baker deixa uma caixa com fitas cassete nas quais ela gravou todos os motivos que levaram ela a cometer suicídio, essas fitas são endereçadas a cada um que contribuíram para seu declínio. Ou seja, cada um que era um Porquê tem sua própria fita contando o que fez e como aquilo ajudou a matar Hannah. Todos, de alguma forma, afetaram a vida de Hannah. Ela deixa como um aviso e (por que não?) uma satisfação, quem sabe um alerta. Mas ela também desencadeia um efeito dominó ao disparar milhares de gatilhos em nós e em todos a sua volta mesmo depois da sua morte. [spoiler] Enquanto nós somos arrastados e levados com ela cada vez mais para o fundo do poço, vemos disparar um gatilho atrás do outro desde os mais comuns como bullying no colégio até relacionamentos, abusos,  machismo, cultura do estupro, estupro e por fim o próprio suicídio. Todos a sua volta a quem as fitas estão endereçadas contribuíram para o rumo angustiante e desesperador que sua vida toma enquanto ela tenta pedir ajuda de várias formas. Menos Clay, ele não fez absolutamente nada e foi exatamente isso o que ele fez de errado. Porque se você vê tudo o que está acontecendo de errado e não faz nada para impedir, você é parte de tudo aquilo. O maior erro do Clay foi estar presente em cada um dos momentos de alguma forma, direta ou indiretamente e não salvar Hannah dos outros ou dela mesma. Ele foi um espectador da vida dela quando poderia ter sido parte dela. Hannah coloca ele nas fitas como um dos porquês com outra explicação mas a verdade é que ele assistiu muitas coisas acontecerem assim como muitas pessoas assistem muitas coisas acontecerem todos os dias e se calam. Existem muitos Clays que poderiam mudar muitas histórias de muitas Hannahs todos os dias. [/spoiler]

Então eu acho muito seguro dizer que a maior mensagem da série é empatia e foi ai que eu percebi que havia algo muito errado com as pessoas. O primeiro grande paradoxo aconteceu ainda enquanto eu assistia a série, eu estava lendo comentários sobre um dos episódios em um aplicativo e algumas respostas eram pesadas, ignorantes e discriminatórias, era um absurdo e sem sentido que aquelas pessoas estivessem assistindo a mesma coisa que eu. Eu não conseguia entender como aquilo não estava tendo o mesmo impacto naquelas pessoas, como elas poderiam agir daquela forma ou pior: como elas poderiam absorver tudo o que estavam assistindo e ainda assim agir daquela forma com tanto ódio e preconceito.

Numa tentativa de fugir das nossas responsabilidades e nos isentar das nossas culpas diárias, buscamos desesperadamente justificativas para nossos atos ao nos apresentarmos aos outros com uma identificação com Hannah Baker, quando na verdade somos todos Porquês fugindo do choque de uma realidade escancarada nos escondendo de nós mesmos. Sejam esses atos grandes ou pequenos. Em meio a tantos gatilhos a que somos expostos ao longo das treze fitas, é mais fácil - e muito conveniente - sermos uma Hannah do que admitirmos que já fomos um (ou muitos) Porquê alguma vez na vida e encarar que a realidade é muito pior do que gostaríamos. Para não ser um Porquê temos que saber que podemos ser um a qualquer momento, temos que aceitar que provavelmente já fomos um em algum momento e que terrivelmente podemos ser de novo. Mas podemos não ser e isso só depende de como encaramos e aceitamos todos os porquês do mundo. Nós vivemos todos os dias milhares de gatilhos e todas as pessoas a nossa volta também, cada um trava sua própria batalha para desviar deles e sobreviver ao mundo - e a si mesmo. 


 Todo mundo que você encontra está lutando uma batalha que você não conhece, seja gentil sempre.

 
Já temos gatilhos demais no mundo, não seja mais um Porquê na vida de alguém. Existem muitos pedidos de ajuda silenciosos a nossa volta e tudo o que essas pessoas precisam é empatia.